Durante anos, Marcos Yoshi filmou seus pais como um modo de tentar entender e conhecer quem eram aquelas duas pessoas que se tornaram estranhos depois que seus laços tinham sido separados em 1999, quando eles partiram para o Japão buscando juntar dinheiro para dar uma educação melhor para seus filhos. O resultado é seu primeiro longa, “Bem-Vindos de Novo”, um documentário bonito e honesto, com todas as imperfeições, fracassos e pequenas vitórias da vida e que vai além da premissa das ligações familiares e da reconstrução do afeto com quem passou metade de sua vida do outro lado do mundo.
O filme começa com um tom saudosista e várias imagens resgatadas dos VHS das viagens da família reunida nas férias de final de ano, aborda as dificuldades financeiras e a decisão dos pais partindo e o deixando, aos 14 anos de idade, com e as irmãs e os avós maternos. A partir daí, cada um dos irmãos sente a falta dos pais de um modo diferente justamente na adolescência, o período mais difícil e com mais mudanças em suas vidas.
Os sentimentos ligados ao período das festas se inverte, e esses “órfãos de pais vivos”, como Yoshi define, começam a detestar as festividades que agora simbolizam a ausência. Os pais, que foram para ficar 2 anos acabam ficando 13, quando retornam geram um choque de realidade onde pais e filhos, agora adultos, não mais se reconhecem. É através da filmagem da rotina de seus pais: desde o despertar, trabalho no restaurante e o voltar para casa, que o diretor vai desvendando quem são essas pessoas que ficaram com uma visão diferente de seus filhos, do mundo e da realidade do Brasil.
Em sua busca por conhecê-los, e de uma identidade própria, ele passa a revisitar sua própria história através dos vídeos, cartas e fotos de sua família e de outras famílias de origem japonesa que vieram para o Brasil em busca de uma vida melhor. A história de seus pais é a história inversa dos pais de seus avós: são duas gerações de sacrifícios, de famílias tentando voltar à terra natal, suas origens e cultura, mas seus pais fizeram o caminho inverso indo ao Japão para trabalhar nas fábricas. Há centenas de milhares de brasileiros de famílias de origem japonesa em sua terceira ou quarta geração, assim como seus pais, que vão trabalhar temporariamente no Japão e são conhecidos como dekassegui, e muitos de nós temos algum parente ou conhecemos alguém que foi para lá para juntar dinheiro.
Vemos que a história de seus pais é quase uma saga com golpes do destino e recomeços: problemas econômicos os fazem imigrar, ficam fora do Brasil no período mais próspero, gastam tudo que guardaram para tratar um problema de saúde inesperado, voltam quando uma crise econômica se inicia no Brasil e aí se seguem alguns acertos e várias derrotas.
São dramas da família de Yoshi, mas também de milhares de outros imigrantes pelo mundo cuja principal preocupação é ganhar dinheiro. É uma história universal e atemporal do sonho de enriquecer em outro país, mas ao usar o seu exemplo ele faz uma crítica intensa ao capitalismo selvagem que o Japão criou explorando ao máximo as pessoas. São jornadas de até 12 horas por dia, 6 dias por semana em trabalhos repetitivos e contínuos, transformando pessoas em máquinas em busca de produtividade.
A imagem que me vem à mente é a de Chaplin em “Tempos Modernos”, em que ele se funde com a máquina em busca de mais velocidade. Mas a graça acaba por sumir ao pensar que nesse sistema não há estabilidade de trabalho ou econômica, não há seguro-saúde, direitos; as pessoas não têm tempo de criar ou cultivar laços afetivos, ter hobbies ou algum lazer. No fim, a idealização do país tão evoluído tecnologicamente é um pesadelo para os imigrantes, consumindo deles tempo, saúde, vidas.
E é assim que o diretor vai nos revelando que a vida dos pais foi de sacrifícios, opondo-se às mentiras contadas pelos dois lados. As fotos, vídeos e telefonemas de “está tudo bem” escondem a dor dos que partiram e dos que ficaram. É uma pequena metáfora do cinema em si: mesmo quando tenta reproduzir a realidade, ele a distorce de uma certa maneira por escolher o quê e como mostrar e dizer. Ao usar a câmera para se conectar com seus pais pelo registro, buscando uma verdade, o próprio diretor se questiona sobre se deveria ou não mostrar a vulnerabilidade do pai e, num golpe de honestidade (ou de esperteza), decide por mostrar.
Mais do que falar sobre a história da sua família e utilizá-la como meio para conhecer seus pais e mostrar para eles quem é Marcos Yoshi, o filme serve como base para fazer críticas sociais, culturais, econômicas, nos lembrar que a vida é feita de arrependimentos por nossas escolhas, de tentativas, derrotas e sucessos. Mas o documentário não se encerra em si: o diretor quer que pensemos que as dificuldades e os fracassos devem ser vistos como um recomeço, ou apenas uma etapa da vida. Só nos resta seguir, embalados nos momentos finais pela belíssima voz de Mônica Salmaso nos dizendo que é “hora de trabalhar”.
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