A História da Minha Mulher

A História da Minha Mulher

É delicioso ver o ideal de controle do patriarcado ir se desconstruindo a cada capítulo da história, e notar que Störr aprende a duras penas que não se pode controlar tudo na vida

Após receber o conselho de que deve se casar para curar sua constante dor de estômago, o capitão Jakob Störr (Gijs Naber), um homem tranquilo e solitário por volta de quarenta anos, diz a seu amigo Kodor (Sergio Rubini) que se casará com a primeira mulher que entrar no café, e assim o faz. Essa é a premissa curiosa do novo filme da cineasta húngara Ildikó Enyedi, A História da Minha Mulher, adaptado do livro de Milán Füst “The Story Of My Wife: The Reminiscences Of Captain Störr”, publicado em 1946. A diretora, que em geral escreve suas próprias histórias, não por acaso escolheu uma obra nunca adaptada para o cinema, que conhecia há décadas e que se encaixa em sua cinematografia pela sensualidade da trama, complexidade emocional das personagens, sensibilidade e humor.

O título nos esconde a realidade, uma vez que o filme começa com imagens de baleias na imensidão do azul do mar, nos envolvendo com a voz do capitão holandês Störr em off, deixando uma mensagem para o filho que não teve. A história é contada do ponto de vista dele em sete capítulos, com títulos graciosos. A mulher cuja história nos é relatada e que aceita quase prontamente a proposta de tornar-se a esposa do capitão é a misteriosa francesa Lizzy, interpretada majestosamente (só pra variar) por Léa Seydoux. Uma boa parte da história do filme se passa na Paris dos années folles, os loucos anos 20, quando a cidade vivia uma efervescência cultural e social, era vista como uma grande festa, as pessoas de espírito viviam com intensidade o pós-guerra. E Lizzy é a síntese de tudo isso.

Störr é apresentado como um homem heroico, forte, inclusive fisicamente, vulnerável, gentil, que consegue manter a calma inclusive durante imprevistos – seja no navio, ou pelas águas tempestuosas da vida. O controle lhe dá tranquilidade, inclusive para agir diante de imprevistos. Para esse homem com uma visão de mundo lógica, pragmática, o casamento com uma completa estranha é apenas um modo de resolver seu problema. E assim, na noite de núpcias, para quebrar o clima de estranhamento e criar uma intimidade, ele sugere um despretensioso strip-poker. E é justamente nessa cena que nos é revelado que Lizzy é uma jogadora muito mais hábil. Ela ganha esse e quase todos os demais jogos, por vezes perversos, que cria durante o relacionamento deles. Ao lado dela, toda a masculinidade forte e controle que ele tem em seu navio começa a cair por terra.

Ao contrário do socialmente esperado, esse casal não convencional nasce da aliança de duas almas solitárias, com naturezas diferentes, que se reencontram depois de meses, e é essa distância que faz os encontros deles interessantes. O que Enyedi faz aqui ao adaptar o romance, assim como em sua belíssima obra anterior “Corpo e Alma” (2017), é um estudo de como as pessoas criam laços e se ligam emocionalmente.

Parte do trabalho da demonstração visual da criação do afeto é feita pela fotografia preciosa de Marcell Rév. Ela nos mostra o que não é dito, nos conduz em cenas de sedução como quando dançam tango, nos detalhes de toque da pele, ou na cena de sexo mais sensual do filme onde a câmera, como um voyeur, observa de longe a completa entrega dos corpos ao mesmo tempo que os emoldura como se estivéssemos observando uma pintura.

Mas, como diz o ditado, “mares tranquilos não fazem bons marinheiros”. O casamento começa a ficar turbulento, a paixão faz com que sinta saudades, gere ciúmes e por fim ele começa a imaginar que ela o trai com Dedin (o onipresente Louis Garrel). A personagem de Garrel é quase um estereótipo do dandy francês, e vem em oposição ao de Nader: é um escritor culto que vive da riqueza do tio. Um homem astuto, manipulador, cheio de charme e ironia.

O ciúme é, no fundo, medo da perda de controle, e que faz parte de um processo complexo no qual ele vai perdendo tudo o que o faz forte e competente, mas que também confere camadas a seu personagem. Ildikó Enyedi fez um filme belíssimo não apenas visualmente, como pela construção narrativa delicada de personagens complexas e imperfeitas. Ela nos lembra que há limites para o amor, e que é preciso respeitar a liberdade do outro.

As mais de duas horas e meia de filme valem também pela atuação primorosa dos atores principais: Gijs Naber, com seu je ne sais quoi, no encanta ao longo do filme por diversas razões. E aqui entre nós: é delicioso ver o ideal de controle do patriarcado ir se desconstruindo a cada capítulo da história, e notar que Störr aprende a duras penas que não se pode controlar tudo na vida; é preciso vivê-la. Falta apenas os homens do outro lado da tela que entenderem isso.

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